Das Olimpíadas para os próximos passos

JOGA Brazil
10 min readAug 18, 2021

TÓQUIO 2020 OLIMPÍADAS: OS JOGOS “MAIS EQUILIBRADOS EM TERMOS DE GÊNERO” DA HISTÓRIA

Os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 ficarão conhecidos como a edição “mais equilibrada em termos de gênero” da História. Isso é, de fato, algo para celebrar! De acordo com o COI, suas realizações e compromissos neste assunto incluem:

  • Quase 49% da participação atlética feminina, tornando os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 “os primeiros Jogos Olímpicos com igualdade de gênero”;
  • Todos os 206 Comitês Olímpicos Nacionais (CONs) com pelo menos uma atleta feminino e um atleta masculino em suas equipes olímpicas — pela primeira vez;
  • A Chef de Missão da Equipe Olímpica do COI para Refugiados Tóquio 2020 foi três vezes recordista olímpica e segurou o recorde mundial por muitos anos; Sra. Tegla Loroupe — uma defensora da paz, da causa dos refugiados, da educação e dos direitos das mulheres. Ela também foi a organizadora da Equipe de Refugiados para as Olimpíadas de Verão de 2016 no Rio;
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  • Sra. Anita DeFrantz foi a primeira vice-presidente do COI nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Ela ganhou bronze nos Jogos Olímpicos de Montreal 1976, pioneira no atletismo, que se tornou a primeira afro-americana e primeira mulher americana no Comitê Olímpico Internacional em 1986;
  • Os atletas foram representados pela Comissão de Atletas do COI (AC) com a maioria de seus membros eleitos diretamente pelos próprios atletas;
  • O COI AC é composto por 11 membros do sexo feminino e 6 do sexo masculino. A presidente do COI e membro do Comitê Executivo do COI é a Sra. Kirsty Coventry, pentacampeã olímpica e vencedora de sete medalhas olímpicas. A Vice-Presidente é a Sra. Danka Bartekova, três vezes medalhista olímpica e bronze nos Jogos Olímpicos de Londres 2012, que também já se qualificou para os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020;
  • O Presidente do COI foi nomeada pela ONU Mulheres como Campeã de HeforShe (EleporEla) em reconhecimento à contribuição do COI e ao compromisso com a igualdade de gênero.

De acordo com a organização, as funcionárias representam hoje 53% da administração do COI. A participação feminina foi impulsionada pela Agenda Olímpica de 2020:

  • A participação feminina no COI é de 37,5%, tendo sido aumentada de 21% em relação a antes disso;
  • A representação feminina no Conselho Executivo do COI é de 33,3%, com um aumento em relação aos 26,6% iniciais;
  • As mulheres representam 47,8% dos membros das comissões do COI, em comparação com os 20,3% da Agenda pré-olímpica 2020.

É muito positivo que o COI esteja aumentando sua participação feminina enquanto se certifica de que essas mulheres que ocupam as novas oportunidades profissionais sejam qualificadas e conectadas com o ecossistema esportivo. Isto talvez signifique que os esportes e o futebol feminino podem ser caminhos desejáveis e interessantes para oportunidades de emprego internacionais e globais.

Enquanto a participação feminina aumenta, há muito o que desconstruir para fazer da cultura esportiva um ambiente mais diverso e inclusivo. Muitos podem ter ouvido falar sobre o problema com os uniformes sendo apontados nesta edição dos eventos, como a equipe feminina de handebol de praia da Noruega ser multada depois de se recusar a jogar de biquíni.

Ainda temos que lidar com a proibição de toucas de natação que acomodam cabelos negros volumosos, a referência do presidente do COI ao povo do Japão como “chinês”, com o fato de que há mulheres que não têm a chance de correr porque não alteraram quimicamente seu hormônios naturais sendo que todas se recusaram a baixar a testosterona com pílulas anticoncepcionais. Há avanços, sem dúvida, e (alguns) atletas finalmente podem se expressar.

PROBLEMAS SEXISTAS SEMELHANTES, RESPOSTAS DIFERENTES

Embora seja ótimo olhar para modelos inspiradores em nível internacional, quando olhamos para o futebol em nível local, parece que a desigualdade de gênero está mudando a um ritmo realmente lento. Provavelmente não encontraremos este tipo de informação que tem sido exibida pelo COI sobre a participação das mulheres tão facilmente em outras instituições, como nos sites da federação continental e nacional, por exemplo.

Com episódios pelo menos tão sexistas como quando o chefe dos Jogos Olímpicos de Tóquio Yoshiro Mori se demitiu após os comentários sexistas que fez sobre as mulheres, poderíamos supor que a Federação Brasileira (CBF) gostaria de garantir que sua imagem pública fosse associada a valores mais positivos, tais como igualdade de gênero, diversidade e transparência. Esperaríamos algo mais parecido como isso, especialmente após vários escândalos éticos repetidos com seus presidentes, incluindo as últimas acusações ao presidente Rogério Caboclo por assediar sexualmente mais de uma funcionária.

Mori disse em uma reunião do conselho diretor dos Jogos Olímpicos na semana passada que “as reuniões do conselho com muitas mulheres levam mais tempo” porque “as mulheres são competitivas — se um membro levanta a mão para falar, outros podem pensar que elas também precisam falar”, de acordo com relatos da imprensa japonesa. “Se você quiser aumentar o número de membros femininos, você estaria em apuros a menos que você estabeleça limites de tempo”, foi reportado como tendo acrescentado por ele.

Assim, não ser um assediador (para os homens) e não ser assediada sexualmente em nossos trabalhos (para as mulheres) talvez, com alguma sorte, se torne um novo normal no Brasil. Ao mesmo tempo, o aumento da participação das mulheres — dentro e fora do campo — pode ser um novo parâmetro para a comunidade esportiva internacional. O futuro das mulheres está mudando lentamente, lutando contra muitas barreiras, com certeza, mas o presente mostra melhorias. E isso é importante.

A Federação Brasileira começou a aumentar a visibilidade das mulheres em seu site, mas a CONMEBOL ainda mostra um ambiente muito masculino, na minha opinião. Considere o site da CONCACAF como parâmetro, por exemplo. Quer dizer, provavelmente os homens ainda ocupam mais de 50% da página (e das funções executivas), mas pelo menos dá para ver que as mulheres existem, certo?

Mal posso esperar para que mais métricas de diversidade, que considerem raça e classe, por exemplo, passem a serem colocadas em prática! Mal posso esperar para que pessoas ocupando espaços de poder mostrem-se éticas e realmente comprometidas com as finalidades de suas posições. E, honestamente, espero que possamos ver que os problemas e escândalos realmente podem nos levar a melhores cenários — em vez de trazer à tona problemas antigos não resolvidos que nos fazem sentir presas no passado.

CONDUZINDO MUDANÇAS NO FUTEBOL FEMININO E FAZENDO COM QUE ISSO SEJA VERIFICÁVEL

Há alguns meses eu estava lendo este artigo científico chamado “Uma abordagem institucional da Diversidade de Gênero e Desempenho da Firma” e um importante argumento apresentado foi de que o contexto social é muito importante. Ele aponta e diferencia o papel da legitimidade normativa e regulatória. A legitimidade normativa é a aceitação da prática como apropriada e desejável, baseada em normas e valores organizacionais e compartilhados. Quero dizer, tome tempo para pensar sobre o que consideramos “normal” e que pode ou não ter um status regulatório conflitante.

Falando em legitimidade regulatória, em fevereiro deste ano, a FIFPRO, a maior associação internacional de jogadores de futebol com suas 64 associações nacionais de jogadores membros (o Brasil não sendo uma delas) tornou públicos seus compromissos estatutários:

“Como parte dos novos estatutos ratificados, haverá aumentos obrigatórios na representação geográfica e de gênero no conselho global da FIFPRO. Isto entrará em vigor após as próximas eleições em novembro. A diretoria aumentará em tamanho, bem como em diversidade, abrindo espaço para novas vozes e instituindo um limiar mínimo obrigatório de 33% para o gênero menos representado. Como órgão representativo dos atores globais, a FIFPRO reconhece seu papel de liderança do setor, demonstrando que a diversidade não é um objetivo final em si, mas um elemento essencial para uma governança eficaz e de alto desempenho”.

De acordo com as informações divulgadas em seu lançamento, “foi estabelecido um compromisso plurianual para contribuir com a pesquisa sobre raça e inclusão na indústria do futebol, assim como com a educação em competência cultural”. Isso me soa muito otimista!

Só por curiosidade, no relatório da FIFPRO intitulado “Moldando nosso futuro”, lançado em março de 2021 e sobre o futebol profissional masculino, o Brasil estava entre os 79 países da amostra. Estava lado a lado com o México, Argentina, Turquia, China e Rússia no que eles chamaram de “Cluster C”, reunindo grandes mercados de futebol com economias de futebol avançadas, mas muitas vezes com governança e condições de emprego fracos.

Bem, acho que esses são os tipos de problemas estruturais que as jogadoras de futebol compartilham com os jogadores — considerando que eles estão, na maioria das vezes, sob as regras e sob a administração das mesmas organizações no Brasil.

CONTINUAR APOIANDO O FUTEBOL FEMININO PARA ALÉM DOS GRANDES EVENTOS

As seleções nacionais e oficiais de futebol feminino mostraram seu apoio contra a discriminação e o racismo através de protestos pacíficos nos Jogos Olímpicos — Suécia, Estados Unidos, Chile, Inglaterra e Nova Zelândia. O time das Matildas até mesmo hasteou a bandeira aborígine antes da vitória olímpica sobre a Nova Zelândia.

Como aprendemos e repetimos: a desigualdade de gênero é um problema global e histórico que afeta muitas mulheres no futebol. E o Torneio de Futebol Feminino nos Jogos Olímpicos de Tóquio de 2020 nos mostrou isso novamente. Por exemplo, Cristine Sinclair, da equipe nacional feminina canadense, espera que a medalha de ouro possa mudar algumas disparidades de gênero em seu sistema de futebol, como o fato de que não existe nenhuma liga profissional feminina no Canadá. As Matildas fizeram história chegando ao quarto lugar na competição e a jogadora Ellie Carpenter, de 21 anos, pediu que a Austrália continuasse a apoiar.

Quando se trata do Brasil, Aline Pellegrino — a mulher responsável pelas competições femininas na Federação Brasileira de Futebol — discorda do impacto de qualquer medalha nas mudanças estruturais. Como a australiana, ela pede apoio contínuo de todas as partes interessadas. Ela acredita que há um processo necessário para atender à evolução contínua, e há a necessidade de prestar atenção à formação de novos talentos, massificação e profissionalização.

O FUTEBOL DAS MULHERES ENFRENTA DIFERENTES NECESSIDADES PARA MUDANÇAS LOCAIS

Se compararmos esses parâmetros, o futebol feminino no Canadá parece estar principalmente preocupado com o fato de que não existem ligas de futebol feminino profissional em seu país. Portanto, a maioria das jogadoras é obrigada a jogar na Liga Nacional Americana de Futebol Feminino (NWSL), que não tem equipes canadenses, enquanto que existe a recém-formada Premier League canadense com oito equipes para os homens. Já o futebol feminino no Brasil parece estar preocupado em massificar o esporte, criar novos talentos e melhorar seu status de profissionalização.

De acordo com o relatório da pesquisa de 2019 da FIFA Women’s Football MA, havia 246.142 jogadoras jovens registradas (<18) no Canadá. Se pegarmos metade da população do país naquele ano, dividirmos por dois (para estimar a população feminina), e depois dividirmos esse número de jogadoras jovens pela população feminina estimada, podemos dizer que o futebol é praticamente uma cultura de massa para as meninas canadenses, porque essa quantidade de jogadoras jovens representa cerca de 1,4% da população feminina.

Enquanto que, se olharmos para os EUA, embora haja um grande e impressionante número de 1.520.000 jovens jogadoras registradas (<18), quando consideramos sua enorme população e estabelecemos uma população feminina estimada, obtemos uma porcentagem um pouco menor, em torno de 0,9%. Mas a idéia de massificação também poderia incluir outros dados no relatório, como o número de jogadoras jogando futebol organizado. Para os EUA, havia 9.500.000 jogadoras, representando 5,9% de uma população feminina estimada, e para o Canadá, havia 290.087 jogadoras, representando 1,6% de uma população feminina estimada naquele ano.

Prestando mais atenção ao problema relatado pelo Canadá, quando consideramos as jogadoras adultas registradas, havia 43.945 jogadoras, representando 0,25% de uma população feminina estimada. Em comparação com os EUA, havia 80.000 jogadoras, representando 0,0,5% de uma população feminina estimada. Isso poderia significar que o Canadá tem um problema real de demanda reprimida por sua profissionalização como jogadores de futebol canadenses, com competição e ligas nacionais, como Sinclair argumentou antes.

Apenas para tornar mais explícito o problema brasileiro baseado no gênero sobre a massificação do futebol feminino, não tínhamos sequer 500 jogadoras juvenis registradas nesse mesmo relatório publicado em 2019; esse montante representaria 0,0005% de uma população feminina estimada. Para o Brasil, naquele mesmo relatório, havia 2.974 jogadoras adultas registradas, representando 0,003%, e 15.000 jogadoras, representando 0,01% de uma população feminina estimada naquele ano.

Isso parece muito difícil de explicar sem o argumento da discriminação de gênero, considerando que o futebol é massificado para os homens no Brasil. Como disse Pellegrino, há profundas cicatrizes sobre a proibição que as mulheres enfrentaram no Brasil, e para superar essa herança cultural baseada na discriminação de gênero exige muito trabalho. Não estamos falando aqui nem de visibilidade nem de um mercado interno para o futebol feminino. Aumentar estes números locais para se aproximar do mercado internacional é um enorme desafio para o futebol feminino no Brasil — um desafio maior e mais importante do que a medalha de ouro olímpica, na minha opinião.

Eu me pergunto como estão se saindo os outros países que enfrentaram a proibição do futebol feminino (como França, Inglaterra e Alemanha) e o que podemos aprender com suas experiências.

Créditos: Natalia Lopes

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